entretanto minha ânsia de viver é feroz''
- Clarice Lispector
Semibiográfico,poesias, crônicas, contos e haikais. "Eu canto porque o momento existe e a minha alma está completa. Não sou alegre nem sou triste: Sou poeta."
A realidade
Sempre é mais ou  menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguaes a  nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre  é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dôr nas aras
Como ex-voto aos  deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a  interrogues.
Ella nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos  Deuses.
Mas serenamente
Imita o  Olympo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se  pensam.
1 - 07 - 1916, RICARDO REIS










Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais.. .
Não me venham dizer que estava materialmente
previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas
das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...
          O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
          Madrugador, jovial;
          Logo de manhã cedo
Começava a soltar, dentre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
          Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
          O melro; dentre a horta,
          Dizia-lhe: "Bons dias!"
          E o velho padre-cura
não gostava daquelas cortesias.
O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
          Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres pelo monte, a pé,
          Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
          Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
          Até que ultimamente
          O velho disse um dia:
"Nada, já não tem jeito!, este ladrão
          Dá cabo dos trigais!
          Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!"
          E o melro entretanto,
          Honesto como um santo,
          Mal vinha no oriente
          A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno insecto.
E apesar disto, o rude proletário,
          O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!
          Foi para a eira o trigo;
E, armando uns espantalhos,
          Disse o abade consigo:
"Acabaram-se as penas e os trabalhos."
Mas logo de manhã, maldito espanto!
          O abade, inda na cama,
Ouvindo do melro o costumado canto,
          Ficou ardendo em chama;
          Pega na caçadeira,
          Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!
          Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre-cura andava enfermo;
          Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura
(Muito embora o leitor não me acredite),
          Que o bom do padre-cura
          Perdera  o apetite!
Andando no quintal, um certo dia,***
E ao vê-los exclamou enfurecido:
"A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era minha sementeira:
          Era o pão, e era o milho;
          Transmitiu-se o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho.
É doutrina da Igreja. Estou vingado!"
E, engaiolando os pobres passaritos,
          Soltava exclamações:
          "É uma praga. Malditos!
Dão me cabo de tudo esses ladrões!
Raios os partam! Andai lá que enfim"
E deixando a gaiola pendurada,
Continuou a ler o seu latim,
          Fungando uma pitada.
Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
          Uma bela tristeza
Harmónica, viril, indefinida.
          A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dorida
Um misticismo heróico e salutar.
As árvores, de luz inda douradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
          Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se a casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
          Os rebanhos e as flores,
          As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura,
Destacava na frouxa claridade,
          Como uma nódoa escura.
E, introduzindo a chave no portal,
          Murmurou entre dentes:
          "Tal e qual tal e qual!
Guisados com arroz são excelentes."
* * * * * *
Nasceu a Lua. As folhas dos arbustos
 Tinham o brilho meigo, aveludado,
 Do sorriso dos mártires, dos justos.  
 Um eflúvio dormente e perfumado  
 Embebedava as seivas luxuriantes.
 Todas as forças vivas da matéria  
 Murmuravam diálogos gigantes
                Pela amplidão etérea.
 São precisos silêncios virginais,  
 Disposições simpáticas, nervosas,  
 Para ouvir falar estas falas silenciosas  
                Dos mundos vegetais.
 As orvalhadas, frescas espessuras,
 Pressentiam-se quase a germinar.
 Desmaiavam-se as cândidas verduras  
 Nos magnetismos brancos do luar.
 
 ..................................................
 ..................................................
      
E nisto o melro foi direito ao ninho.
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrozito acetinado e brando.
          Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma frecha; e, louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.
"Quem vos meteu aqui?!" O mais velho,
Todo tremente, murmurou então:
"Foi aquele homem negro. Quando veio,
Chamei, chamei Andavas tu na horta
Ai que susto, que susto!, ele é tão feio!
Tive-lhe tanto medo! Abre esta porta
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
          Num bonito lugar
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
          Para voar, voar!"
          E o melro alucinado
          Clamou:
                         "Senhor! senhor!
É porventura crime ou é pecado
          Que eu tenha muito amor
          A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
          Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
          Quanta noite perdida
          Nem eu sei...
          E tudo, tudo em vão!
          Filhos da minha vida
          Filhos do coração!!!
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o Céu par voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!
          Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa
          Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! Quase à noitinha
          Parti, deixei-os sós
A culpa tive-a eu, a culpa é minha,
          De mais ninguém! Que atroz!
          E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar
Remorso eterno! eterno pesadelo!
.................................................
Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera
          Ser abutre ou fera
Para partir o cárcere maldito!
E como a noite é límpida e formosa!
          Nem um ai, nem um grito
Que noite triste!, oh, noite silenciosa!"
E a natureza fresca, omnipotente,
          Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
          Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
          Cantavam rouxinóis.
          Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas.
A lua triste, a Lua merencória,
          Desdémona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
          Branca como a harmonia,
          Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons das flores,
Na atonia cruel das grandes dores,
          O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora o Nazareno
          Na noite do calvário!
Segundo o seu costume habitual,
          Logo de madrugada
O padre-cura foi para o quintal,
Levando a Bíblia e sobraçando a enxada.
          Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavelmente
          Tratava da hortaliça
E rezava a Deus-Padre Omnipotente
          Vários trechos latinos,
Salvando desta forma, juntamente,
As ervilhas, as almas e os pepinos.
E já de longe ia bradando:
                                 "Olé!
          Dormiram bem? Estimo
          Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do Diabo,
Julgam que isto que era só dar cabo
          Da horta e do pomar,
E o bico alegre e estômago contente,
E o camelo do cura que se aguente,
Que engrole o seu latim e vá bugiar!
Grandes larápios! Era o que faltava
          Vocês irem ao milho,
          E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Têm bico, é certo, mas não têm tonsura
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhas naturais de um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé! Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço!
          E então a Fortunata
Que tem um dedo e jeito para isso!
Hei-de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
          Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar!"
Mas nisto o padre-cura, titubeante,
          Quase desfalecendo,
Atónito de horror, parou diante
          Deste drama estupendo:
O melro, ao ver aproximar o abade,
          Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
          Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
          Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
          E alucinado, exangue,
          Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sangue,
Partiu num voo arrebatado e louco,
          Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno,
Disse:
          "Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa mas a alma voa
Ó filhos, voemos pelo azul! Comei!" -
E mais sublime do que Cristo, quando
Morreu na Cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, trespassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágrima, de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repente
Num carcavão com silveiras em flor.
E o velho abade, lívido d'espanto,
          Exclamou afinal:
"Tudo o que existe é imaculado e é santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d'almas o universo todo.
Tudo que o vive ri e canta e chora
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora.
Ó mistério sagrado da existência,
          Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até à mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura!
............................................................
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava"
 
E quedou silencioso. O velho mundo,
 Das suas crenças antigas, num momento,  
 Viu-o sumir exausto, moribundo,
                Nos abismos sem fundo
 Do temeroso mar do Pensamento.
 E chorou e chorou A Igreja, a Crença,  
 Rude montanha, pavorosa, escura,
 Que enchia o globo com a sombra imensa  
 Dos seus setenta séculos d'altura;  
 O Himalaia de dogmas triunfantes,
 Mais eternos que o bronze e que o granito,  
 Onde aos profetas Deus falava dantes,  
 Entre raios e nuvens trovejantes,
 Lá dos confins sidérios do infinito;  
 Esse colosso enorme, em dois instantes  
 Viu-o tremer, fender-se e desabar
                Numa ruína espantosa,
 Só de tocar-lhe a asa vaporosa  
 Duma avezinha trémula, a expirar!  
 .................................................
   .................................................
   E, arremessando a Bíblia, o velho abade  
 Murmurou:
                      "Há mais fé e há mais verdade,
                Há mais Deus concerteza
 Nos cardos secos dum rochedo nu
 Que nessa Bíblia antiga Ó Natureza,  
 A única Bíblia verdadeira és      tu!..."
Guerra Junqueiro
A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua  cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua  plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço,  infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um  milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é  milagre.
Tudo, menos a morte.
Bendita a morte,
que é o fim de todos  os milagres!  
Manuel Bandeira
Di, falando...
" - A mulata, para mim, é um símbolo do Brasil. Ela não é preta nem branca. Nem rica nem pobre. Gosta de música, gosta do futebol, como nosso povo. (...)" 

 
 





Realiza a primeira individual de caricaturas na livraria O Livro. A partir de 1918, integra o grupo de artistas e intelectuais de São Paulo com Oswald de Andrade (1890-1954) e Mário de Andrade (1893-1945), Guilherme de Almeida (1890-1969) , entre outros. Trabalha como diretor artístico da revista Panóplia, em 1918, em São Paulo, e ilustra a revista Guanabara, em 1920, sob o pseudônimo Urbano. Em 1921 ilustra A Balada do Enforcado, de Oscar Wilde (1854-1900), e publica, em São Paulo, o álbum Fantoches da Meia-Noite. É um dos idealizadores e organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, autor do material gráfico da exposição. Muda-se para a Europa como correspondente do jornal Correio da Manhã. Em Paris, estabelece ateliê em Montparnasse e freqüenta a Academia Ranson, onde conhece artistas e intelectuais. Retorna ao Rio de Janeiro em 1925 e em 1928 filia-se ao Partido Comunista do Brasil - PCB. No ano seguinte, faz a decoração do foyer do Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Em 1931 participa do Salão Revolucionário e funda em São Paulo, em 1932, com Flávio de Carvalho (1899-1973), Antonio Gomide (1895-1967) e Carlos Prado (1908-1992), o Clube dos Artistas Modernos, CAM. Na Revolução Constitucionalista fica preso por três meses como getulista. Em 1933, casa-se com a pintora Noemia (1912-1992), sua aluna. Publica o álbum A Realidade Brasileira, série de doze desenhos satirizando o militarismo da época. Em Paris, em 1938, trabalha na rádio Diffusion Française nas emissões Paris Mondial. Retorna ao Brasil em 1940; publica poemas na Antologia de Poetas Brasileiros, organizada por Manuel Bandeira (1884-1968). Publica o livro de memórias Viagem da Minha Vida: memórias em três volumes (V.1 - Testamento da Alvorada, V.2 - O Sol e as Estrelas e V.3 - Retrato de Meus Amigos e ... dos Outros) editado pela Editora Civilização Brasileira. Premiado em 1971 pela Associação Brasileira dos Críticos de Arte - ABCA. Em 1972 publica o álbum 7 Xilogravuras de Emiliano Di Cavalcanti, pela Editora Onile, e recebe o Prêmio Moinho Santista. Em Salvador, recebe o título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Bahia - UFBA, em 1973 

Minotauro, Bebedouro e Mulheres (1933), gravura de Picasso
 Guache sobre cartão do pintor naturalizado brasileiro Lasar Segall - “Casal” (1919).