Eu era cego desde muito pequeno. Aos três anos de idade – assim contaram meus pais – fui atacado por uma ave de rapina que perfurou meus olhos.
Não guardei comigo nenhuma lembrança do mundo visível. As cores, para mim, eram palavras vazias de sentido. Conhecia o mundo pelas mãos, pelo nariz, pelos ouvidos. Não tinha olhos para ver.
Na época em que eu vivia, ser cego era quase uma sentença de morte. Sobrevivi porque arranjava um pouco de dinheiro cantando em casamentos e festas. No resto do tempo, mendigava.
Os mendigos cegos têm uma vantagem e uma desvantagem. A vantagem é que despertam maior piedade dos homens caridosos. A desvantagem é que são ludibriados pelos mendigos maus. Em toda profissão há gente desonesta.
Um dia, em Betsaida, alguém me tomou pelo braço e disse:
– Há um homem que você precisa conhecer.
Respondi, amargurado (mendigos maus haviam acabado de levar três moedas minhas):
– Não quero conhecer ninguém. Todos que eu conheço se aproveitam da minha escuridão.
Mas a pessoa que me procurou – até hoje não sei quem era – insistiu, puxando-me fortemente pelo braço.
Percebi que era conduzido para perto de uma multidão. No centro dessa multidão, disseram-me, havia um homem santo. Todos fizeram silêncio quando cheguei perto do tal homem. Quem havia me conduzido até ali sumiu de repente – e nunca mais apareceu.
O homem me tomou pelo braço e conduziu-me para fora da aldeia. Nesse local ermo, escutei o som de uma prece – e percebi que o homem cuspira em meus olhos mortos. Em seguida, ele impôs as mãos sobre a minha face – e eu vi um clarão mais forte que o da criação do Universo.
O homem perguntou se eu podia ver alguma coisa. Olhei para a multidão distante na aldeia e, espantado comigo mesmo, disse:
– Vejo os homens; são como árvores que andam.
E o homem me pediu para não entrar na aldeia, nem dizer nada a ninguém.
Mas como eu poderia esconder o fato de que havia recuperado a visão? Todos ali me conheciam; eu havia cantado no casamento e nas festas de inúmeras pessoas diferentes da região.
Aos poucos, fui aprendendo a enxergar as coisas distintamente. Sim, porque a visão é algo que se aprende aos poucos, como fazem as crianças de colo. Aprendi que o céu é azul; que o Sol é brilhante; que a água é incolor; que o sangue é vermelho; que as folhas são verdes; que à noite mergulhamos numa escuridão parecida, mas não igual à cegueira – porque existem as estrelas e a Lua, e elas também têm suas cores, se observarmos com atenção.
“Hoje vemos como através de um espelho, mas depois veremos face a face”, disse Paulo, que também ficou cego um dia, a meio caminho de Damasco.
Até hoje procuro duas pessoas neste mundo: o homem que me conduziu e o homem que me curou. E desconfio que eles sejam um só.
- Publicado no Jornal de Londrina.
Publicado em 12 de novembro de 2008 às 11:05 por briguet
Tags: cronica
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
Os olhos do cego
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