terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Arquitetura penitenciária

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foto: blog susancordeiro

"A vida pode mudar a arquitetura. No dia em que o mundo for mais justo, ela será mais simples".
(Oscar Niemeyer).

Quando a Lei de Execução Penal prevê em seu art. 5º a classificação e a separação dos presos conforme seus antecedentes e sua personalidade, ela pressupõe naturalmente que a população carcerária não é homogênea e que apresenta as mesmas diferenças e padrões de comportamento característicos da sociedade de que provêm. E essa classificação é fundamental para que se estabeleça um programa individualizado para a execução da pena aplicada a cada homem e a cada mulher submetidos à prisão. A separação entre os presos de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado, é também determinada na própria Constituição Federal, em seu art. 5º, XLVIII, que ordena, a partir desses critérios, o cumprimento da pena em estabelecimentos distintos. Desses e outros fatores que orientam a execução penal, talvez a separação em razão do sexo seja o único que venha sendo observado na maior parte dos estabelecimentos penais brasileiros, não obstante a freqüente verificação do alojamento de homens e mulheres em ambientes comuns ou separados apenas por biombos ou paredes. No Brasil, cuja população carcerária passa de 420.000 pessoasi, ainda não se tem um projeto penitenciário que contemple a execução penal individualizada e que leve em conta critérios racionais de separação entre os presos. Não há uma política nacional que oriente a arquitetura penitenciária segundo aquilo que prevê a LEP ou a Constituição Federal. Os manuais disponíveis e que orientam a elaboração de projetos chegam a conter graves erros, inclusive quanto à capacidade das celas e alojamentosii. Disso resulta o previsível: propostas arquitetônicas que não se traduzem em soluções. A preocupação com a segurança, embora evidentemente indispensável em matéria de prisões, tem sido o único critério orientador da arquitetura penitenciária. De tal sorte, constroem-se caixas de concreto para onde são levados os presidiários, quaisquer que sejam as razões que tenham determinado a prisão. Misturam‑se assaltantes com homicidas, traficantes com estupradores, jovens com veteranos do crime, condenados com presos provisórios. Mesmo a prisão civil, como nos casos de dívida de pensão alimentícia ou do chamado depositário infiel, é levada a cabo nesses mesmos ambientes. Será que o preso por dívida de alimentos carece da mesma estrutura de segurança destinada a criminosos?! Será que o condenado por crime passional deve ser submetido aos mesmos rigores dos assaltantes profissionais?! Faz sentido o alojamento, nos mesmos conjuntos arquitetônicos, de condenados com presos à espera de julgamento?! Ou ainda: mulheres presas oferecem os mesmos riscos do que os homens?! Condenados a penas longas, já calejados do cárcere, exigem segurança máxima durante todo o período da prisão?! O traficante profissional deve ser mantido nos mesmos alojamentos das mulas, pessoas sem antecedentes criminais condenadas pelo transporte de drogas?! A resposta para as diversas indagações formuladas é uma só: não! Entretanto, o que se tem visto no Brasil é a execução de projetos arquitetônicos voltados quase que exclusivamente à edificação de estabelecimentos prisionais de segurança máxima, que não levam em conta a heterogeneidade da população encarcerada. Mesmo aquelas unidades destinadas ao regime semi‑aberto são marcadas pela estrutura de concreto e ferro, voltadas à idéia de plena segurança e de um pretenso ? e nunca alcançado ? controle sobre os presos. Projetos caros e ruins. Em razão do elevado custo, não atendem à crescente demanda por vagas. Não atendendo à demanda por vagas, rapidamente ficam superlotados e, juntamente com outros fatores desumanizadores do cárcere, contribuem para a brutalização do ser humano preso e, por conseqüência, acabam por promover mais violência e criminalidade, ou seja, exatamente o oposto daquilo a que originariamente se propõem as prisões. A arquitetura penitenciária, para atender ao que prevê o nosso ordenamento jurídico, deve ser necessariamente mais simples, mais humana e, pasmem(!), mais barata. Isso mesmo: para que o sistema penitenciário obedeça ao que determinam a Constituição e a Lei de Execução Penal, a arquitetura penitenciária deve se desprender dos atuais paradigmas, muitas vezes fundados em profundos preconceitos, e viabilizar a edificação de soluções efetivas. O homem e a mulher que habitam as nossas prisões não são monstros ou feras de feições lombrosianas, como na visão estereotipada apresentada pelos mass media sensacionalistas ou pelo cinema americano. São somente homens e mulheres. Seres humanos que por diversas razões um dia enveredaram para o crime ou que se envolveram eventualmente em práticas criminosas isoladas. Estruturas de segurança máxima, de concreto armado e ferro, são necessárias. Porém, e não é nenhuma ousadia afirmar, para apenas uma pequena parcela da população carcerária. Para a esmagadora maioria dos 420.000 homens e mulheres atualmente encarcerados (qualquer diretor de penitenciária poderá confirmar a assertiva) a arquitetura penitenciária poderia ser de alvenaria simples. Para se ter uma idéia da dimensão do panorama penitenciário que tal reorientação pode significar, o custo de uma única cela do Presídio Regional de Goiânia, cuja obra fora iniciada em 1999 (e logo embargadaiii por falhas arquitetônicas) equivalia ao valor de construção de um apartamento de quatro quartos na região mais valorizada da capital goiana. No caso citado havia também indícios de superfaturamento da obra, mas o fato é que tais estruturas são mesmo extremamente caras. E nem sempre se mostram necessárias. Respeitado o limite de capacidade do estabelecimento penal, observada a regra da cela individual para cada preso (LEP, art. 88) e realizada a classificação segundo os critérios legais (idade, personalidade, natureza do crime, antecedentes etc), a penitenciária pode ser edificada segundo um projeto arquitetônico de muito mais baixo custo, com feições humanizadoras, aberto inclusive à experimentação de novos materiais de construção e de novas tecnologias. As faculdades de Arquitetura e os muitos arquitetos que já atuam no sistema penitenciário, em todos os cantos do Brasil, podem rapidamente traduzir essa idéia em projetos. Projetos que considerem não apenas as diversidades dos milhares de homens e mulheres submetidos ao cárcere, mas também as características próprias de cada região do país. Até porque a penitenciária da cidade do Rio de Janeiro não precisa ser necessariamente idêntica à do interior do Estado fluminense, assim como aquela do Amazonas pode ter distinções quanto à penitenciária de São Paulo. Também o presídio projetado para a região quente do Ceará deve distinguir‑se daqueles edificados no frio da Serra Gaúcha. Projetos inspirados nos princípios humanizadores da Constituição e da Lei de Execução Penal devem ainda contemplar unidades pequenas, para no máximo 100 (cem) pessoas, distribuídas em mais regiões. A concentração de pessoas em grandes complexos penitenciários há muito já se mostrou equivocada e desastrosa. Talvez alguém duvide que o número máximo de 100 presos por unidade seja impossível de se implementar no país. Na realidade, todavia, a se dividir a atual população carcerária em presídios para até 100 pessoas, chegar‑se‑ia ao curioso e surpreendente resultado de menos de um estabelecimento prisional para cada município brasileiro. Isto mesmo! Seriam necessários 4.200 estabelecimentos para 100 presos cada, ao passo que o Brasil conta atualmente com 5.562 municípiosiv. Penitenciárias para homens e penitenciárias para mulheres, cadeias públicas decentes, colônias para o regime semi‑aberto condignas. Panorama não apenas imaginário, mas plenamente exeqüível desde que aconteça o despertar para as possibilidades que surgem a partir do interesse político da sociedade e do Estado para a questão penitenciária. Segurança máxima para quem precisa de segurança máxima. Segurança em outros níveis, inclusive mínima, para a grande massa de seres humanos encarcerados. Melhores resultados com menores custos. Condições favoráveis para que se garanta o desenvolvimento de atividades voltadas à garantia da dignidade humana do preso, como trabalho, educação, saúde, lazer. Favoráveis também para a humanização do trabalho dos agentes penitenciários, hoje tão oprimidos quanto os próprios presos nas atuais estruturas carcerárias. Espaços para o necessário castigo pelo crime, mas com respeito à dignidade do homem, pois, segundo as palavras de Thomas More, ?se a lei castiga, é para matar o crime, conservando o homem?v. Houve um tempo em que o panóptico de Jeremy Benthamvi significava a prisão perfeita, marcada pela utilidade da pena, pelo baixo custo de gerenciamento e pela idéia de controle total sobre o preso. Os tempos agora são outros. O homem mudou. Como não se pode abrir mão da prisão, conforme nos lembra Michel Foucaultvii, impõe‑se uma atitude crítica e realista frente à questão penitenciária, não havendo espaço para aquela idéia, de complexa sustentação na modernidade, de que a prisão ideal seria a não‑prisão. Ao mesmo tempo, entretanto, a prisão não precisa ser uma caixa de concreto, impenetrável, cara e desumana. Pelo contrário, deve ser espaço de punição com dignidade. A prisão é espaço de castigo, mas limitado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. A arquitetura penitenciária tem uma missão de fundamental relevância na construção desses espaços. Mãos à obra, arquitetos do Brasil!

HAROLDO CAETANO DA SILVA Promotor de Justiça da Execução Penal em Goiânia-GO Mestre em Direito (Ciências Penais) pela Universidade Federal de Goiás E-mail: hcaetano@cultura.com.br

(surrupiado na caradura do blogdodeusdete)

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Roselee, muito interessante seu blog. Fiquei também contente por saber que alguém anda lendo o que eu escrevo...
abraço do Haroldo

 
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